quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Texto e interpretação: Crônica: Mila

Autor:Carlos Heitor Cony

Era pouco maior do que minha mão: por isso eu precisei das duas para segurá-la, 13 anos atrás. E, como eu não tinha muito jeito, encostei-a ao peito para que ela não caísse, simples apoio nessa primeira vez. Gostei desse calor e acredito que ela também. Dias depois, quando abriu os olhinhos, olhou-me fundamente: escolheu-me para dono. Pior: me aceitou.
Foram 13 anos de chamego e encanto. Dormimos muitas noites juntos, a patinha dela em cima do meu ombro. Tinha medo de vento. O que fazer contra o vento?
Amá-la — foi a resposta e também acredito que ela entendeu isso. Formamos, ela e eu, uma dupla dinâmica contra as ciladas que se armam. E também contra aqueles que não aceitam os que se amam. Quando meu pai morreu, ela se chegou, solidária, encostou sua cabeça em meus joelhos, não exigiu a minha festa, não queria disputar espaço, ser maior do que a minha tristeza.
Tendo-a ao meu lado, eu perdi o medo do mundo e do vento. E ela teve uma ninhada de nove filhotes, escolhi uma de suas filhinhas e nossa dupla ficou mais dupla porque passamos a ser três. E passeávamos pela Lagoa, com a idade ela adquiriu "fumos fidalgos'; como o Dom Casmurro, de Machado de Assis. Era uma lady, uma rainha de Sabá numa liteira inundada de sol e transportada por súditos imaginários.
No sábado, olhando-me nos olhos, com seus olhinhos cor de mel, bonita como nunca, mais que amada de todas, deixou que eu a beijasse chorando. Talvez ela tenha compreendido. Bem maior do que minha mão, bem maior do que o meu peito, levei-a até o fim.
Eu me considerava um profissional decente. Até semana passada, houvesse o que houvesse, procurava cumprir o dever dentro de minhas limitações. Não foi possível chegar ao gabinete onde, quietinha, deitada a meus pés, esperava que eu acabasse a crônica para ficar com ela.
Até o último momento, olhou para mim, me escolhendo e me aceitando. Levei-a, em meus braços, apoiada em meu peito. Apertei-a com força, sabendo que ela seria maior do que a saudade.

1) Nesse texto, o cronista revela o enorme sentimento de amor entre ele e seu cão, do momento da adoção até o dia em que o levou para o sacrifício.
a) Que trecho do texto revela o primeiro e o último contato entre o cronista e seu cão?
b) Você já viveu ou vivencia experiência semelhante?

2) Com que propósito, na sua opinião, o cronista publicou essa história em um jornal?

3) É comum a idéia de que são as pessoas que escolhem os seus animais de estimação. Segundo o cronista, no momento da adoção foi Mila que o escolheu como dono.
a) Por que você acha que o cronista inverteu essa idéia?
b) Em que outro momento o cronista confirma essa idéia?

4) Leia os versos a seguir. A partir da idéia ou imagem que transmitem, estabeleça uma associação com alguma situação narrada na crônica de Cony.
Observação: para cada estrofe faça uma associação com a situação do texto, isto é, terá três associações.

a) "A estrela cadente
me caiu
ainda quente
na palma da mão.
[...]"
(Paulo Leminski)

b) "O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada..."
(Mário Quintana)

c) "Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
Não do espinho na garganta."
(Cecília Meirelles)

5) Localize, na crônica, expressões que caracterizam:
a) o narrador como carinhoso e amigo.
b) Mila como pequena e carinhosa.


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