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quarta-feira, 1 de junho de 2011

interpretação de texto: "Fala, amendoeira"

Fala, amendoeira

Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza – essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a janela matinal, o cronista deparou no firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre céu e chão – névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam todas verdes, menos uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.
Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios elétricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e, ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe pelo tronco. Nenhum desses incômodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.
Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, numa gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom – cor final de decomposição, depois da qual as folhas caem. Pequenas amêndoas atestavam seu esforço, e também elas se preparavam para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador de seu azedinho. É como se o cronista, lhe perguntasse – Fala, amendoeira – por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:
-- Não vês? Começo a outonear. É 21 de março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.
-- E vais outoneando sozinha?
-- Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.
-- Somos todos assim.
-- Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.
-- Não me entristeças.
-- Não, querido, sou tua árvore-de-guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonize com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves... Outoniza-se com dignidade, meu velho.
(Carlos Drummond de Andrade)

01) As palavras remoto (primeiro parágrafo), afetar (segundo parágrafo) e ostentar (terceiro parágrafo) significam, no texto, respectivamente:
( ) longínquo, afeiçoar, alardear;
( ) distante, distrair, mostrar;
( ) antigo, incomodar, exibir;
( ) distraído, aparentar, ornamentar;

02) Equinócio (quarto parágrafo) significa:
( ) equívoco;
( ) ponto de órbita da terra onde se registra igual duração do dia e da noite;
( ) mancha escura que aparece de vez em quando no céu;
( ) que tem poder igual;

03) Em “precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes” (passagem situada no segundo parágrafo), o autor refere-se:
( ) à fome dos cães que comem as amêndoas da amendoeira;
( ) ao hábito que os cães têm de urinar em postes ou troncos de árvore;
( ) aos cães vira-latas que, famintos, comem as folhas de amendoeira;
( ) à precisão com que os humildes cãezinhos demonstram ao andar;

04) Destaque o item que melhor caracteriza o “ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo”, situado no primeiro parágrafo:
( ) desenhista que só se inspira na natureza;
( ) escritor que só escreve sobre a natureza;
( ) pintor de paisagens;
( ) autor que escreve sobre temas da época em que vive;

05) Quando o cronista, referindo-se à árvore escreveu “fala, amendoeira”, no terceiro parágrafo:
( ) cometeu um erro porque árvore não fala;
( ) estava delirando;
( ) usou um recurso de estilo atribuindo à amendoeira qualidades humanas;
( ) foi imperativo porque a árvore era sua;

06) O trecho “frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva”, localizado no oitavo parágrafo, refere-se:
( ) aos escritos do autor;
( ) aos frutos da amendoeira;
( ) aos frutos colhidos na árvore à noitinha;
( ) ao trabalho dos agricultores;

07) Ao usar a passagem “Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais”, quis o autor demonstrar:
( ) que a árvore plantada à sua porta é um bem pessoal;
( ) carinho pela árvore que está plantada em frente à sua porta e que a considera como sua;
( ) que ia iniciar uma descrição da árvore que está plantada em frente à sua porta;
( ) que não permitirá nunca que a árvore seja retirada da frente de sua porta;

08) As expressões anjo vegetal (primeiro parágrafo) e árvore-da-guarda (décimo parágrafo):
( ) são arcaicas;
( ) atestam os erros comuns no autor;
( ) revelam o descuido do autor no uso da Língua Portuguesa;
( ) são criadas pelo autor pela associação com a expressão anjo-da-guarda;

09) Destaque o item que NÃO corresponde à crônica lida:
( ) o autor espiritualizou a amendoeira atribuindo-lhe sentimentos humanos;
( ) o autor compara, na crônica, seu envelhecer com o da amendoeira;
( ) a idéia central da crônica é a descrição dos efeitos do outono sobre as amendoeiras;
( ) a amendoeira com que o autor “conversa” demonstrou sabedoria e bom senso;

10) Destaque o item que encerra a idéia central, a mensagem, enviada pelo cronista:
( ) descuido das autoridades que permitiam a permanência da amendoeira naquele local;
( ) reverencia a amendoeira que considerava sua;
( ) aceitação do envelhecimento com serenidade;
( ) engrandecimento do outono;

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professores apaixonados

Professores e professoras apaixonadas acordam cedo e dormem tarde, movidos pela idéia fixa de que podem mover o mundo.
Apaixonados, esquecem a hora do almoço e do jantar: estão preocupados com as múltiplas fomes que, de múltiplas formas, debilitam as inteligências.
As professoras apaixonadas descobriram que há homens no magistério igualmente apaixonados pela arte de ensinar, que é a arte de dar contexto a todos os textos.
Não há pretextos que justifiquem, para os professores apaixonados, um grau a menos de paixão, e não vai nisso nem um pouco de romantismo barato.
Apaixonar-se sai caro! Os professores apaixonados, com ou sem carro, buzinam o silêncio comodista, dão carona para os alunos que moram mais longe do conhecimento, saem cantando o pneu da alegria.
Se estão apaixonados, e estão, fazem da sala de aula um espaço de cânticos, de ênfases, de sínteses que demonstram, pela via do contraste, o absurdo que é viver sem paixão, ensinar sem paixão.
Dá pena, dá compaixão ver o professor desapaixonado, sonhando acordado com a aposentadoria, contando nos dedos os dias que faltam para as suas férias, catando no calendário os próximos feriados.
Os professores apaixonados muito bem sabem das dificuldades, do desrespeito, das injustiças, até mesmo dos horrores que há na profissão. Mas o professor apaixonado não deixa de professar, e seu protesto é continuar amando apaixonadamente.
Continuar amando é não perder a fé, palavra pequena que não se dilui no café ralo, não foge pelo ralo, não se apaga como um traço de giz no quadro.
Ter fé impede que o medo esmague o amor, que as alienações antigas e novas substituam a lúcida esperança.
Dar aula não é contar piada, mas quem dá aula sem humor não está com nada, ensinar é uma forma de oração.
Não essa oração chacoalhar de palavras sem sentido, com voz melosa ou ríspida. Mera oração subordinada, e mais nada.
Os professores apaixonados querem tudo. Querem multiplicar o tempo, somar esforços, dividir os problemas para solucioná-los. Querem analisar a química da realidade. Querem traçar o mapa de inusitados tesouros.
Os olhos dos professores apaixonados brilham quando, no meio de uma explicação, percebem o sorriso do aluno que entendeu algo que ele mesmo, professor, não esperava explicar.
A paixão é inexplicável, bem sei. Mas é também indisfarçável.
* Gabriel Perissé é Mestre em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP e doutor em Filosofia da Educação e doutorando em Pedagogia pela USP; é autor dos livros "Ler, pensar e escrever" (Ed. Arte e Ciência); "O leitor criativo" (Omega Editora); "Palavra e origens" (Editora Mandruvá); "O professor do futuro (Thex Editora). É Fundador da ONG Projeto Literário Mosaico ; É editor da Revista Internacional Videtur -Letras (www.hottopos.com/vdletras3/index.htm); é professor universitário, coordenador-geral da ong literária Projeto Literário Mosaico: www.escoladeescritores.org.br)